top of page

A lei penal não é álibi para a violência estatal, Dr. Jorge Henrique Schaefer Martins.

1. Contextualização

O Brasil é um país de dimensões continentais com diversidade de cobertura vegetal, geologia, clima, sendo habitado por um povo com diferentes hábitos e costumes, diferente gastronomia, tipo de atividades e anseios, diversas etnias. Une-se pela língua comum, embora com diferentes sotaques, apresentando valências de diferentes ordens no âmbito produtivo e econômico, enfrentando carências comuns e outras distintas em suas variadas regiões, embora a grandeza das tribulações possa ser maior em umas do que em outras.

Todos os seus habitantes anseiam pela felicidade, embora o conceito seja diferenciado entre as pessoas, bastando para alguns a condição de sobrevivência digna.

Mesmo assim, observa-se a existência de classes bem definidas, com a parcela miserável sendo seguida pela pobre, classe média e de alguns ricos.

Em razão disso formam-se verdadeiras “bolhas” onde as pessoas vivem em condições desiguais, como assim o são as dificuldades, misturando-se os mundos apenas quando os mais pobres estão subordinados ou a serviço dos mais ricos, distanciando-se novamente quando as ações policiais focam em um ou outro alvo.

A “bolha” em que vive a parcela da população situada em sua classe média, faz com que sejam esquecidas as pessoas que sobrevivem em favelas ou comunidades periféricas, a quem não é dado acesso a moradias salubres, educação, saúde e trabalho adequados, além de se desprezar a horda de miseráveis que vive nas ruas das médias e grandes cidades do país.

Estes, além de tudo que enfrentam diuturnamente para subsistir e manter suas famílias, convivem com nichos de criminalidade, estando por vezes acuados e ameaçados por grupos marginais, trazendo a insegurança para suas realidades. À unanimidade, o que almejam é segurança, vida sem sobressaltos, com o mínimo de riscos possíveis, mas não é o que têm à sua disposição.

Sem a compreensão desses infortúnios, subsiste uma mentalidade segregacionista não assumida e por vezes inconsciente, naqueles que têm vida mais confortável. Pode-se identificar sua origem nas diferenças entre a “nobreza” da camada mais favorecida em comparação com os menos aquinhoados, como também ocorreu durante o período escravocrata que parece não ter sido de todo abandonado[2], ganhando o atual contorno de preconceito social.

2. A mentalidade preconceituosa e sua consequência nas comunidades pobres

Os aspectos antes tratados possuem extrema relevância pois o pensamento atinente ao confronto com a criminalidade deu margem ao surgimento da figura mítica do “cidadão de bem”, normalmente situado em extrato social mais elevado, a quem se coloca a condição de cumpridor das obrigações, pagador de impostos, estando autorizado a achar-se no direito de se resguardar da violência advinda dos “homens maus”. [3]

Para tanto, apregoa-se e incentiva-se o vale-tudo policial, consistente em desrespeito, violência física, invasão de residências, agressões e mortes em favelas e periferias, como se isto resolvesse a criminalidade.

Verifica-se tratamento idêntico a quem tenha passado criminal, seja suspeito ou tenha a infelicidade de se encontrar no lugar e hora errados, ou mesmo aqueles que se oponham a referidos atos.

A consolidação de tal mentalidade nessa fração da sociedade, em alguns por ilusão e em outros por convicção, faz com que se corra o risco da adoção de tais providências como “política de Estado”. Segundo essa lógica, dever-se-ia dar privilégio ao dito combate à criminalidade a qualquer custo e por qualquer meio, como oposição ao dito “exagerado garantismo”, ou “ativismo judicial” em prol da observância dos princípios constitucionais.

Isto está muito evidente e espelhado no discurso oficial, como se constata da leitura da Exposição de Motivos n. 00014/2019 MJSP, datada de 31 de janeiro de 2019, referente ao chamado “pacote anticrime”, firmada pelo então Ministro de Estado da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Fernando Moro, no tópico referente às alterações ao Decreto nº 2.848/1940 – Código Penal Brasileiro – confirmando cabalmente esta visão:

A realidade brasileira atual, principalmente em zonas conflagradas, mostra-se totalmente diversa da existente quando da promulgação do Código Penal, em 1940. O agente policial está permanentemente sob risco, inclusive porque, não raramente, atua em comunidades sem urbanização, com vias estreitas e residências contíguas. É comum, também, que não tenha possibilidade de distinguir pessoas de bem dos meliantes. Por tais motivos, é preciso dar-lhe proteção legal, a fim de que não tenhamos uma legião de intimidados pelo receio e dificuldades de submeter-se a julgamento em Juízo ou no Tribunal do Júri, que acabem se tornando descrentes e indiferentes, meros burocratas da segurança pública. As alterações propostas, portanto, visam dar equilíbrio às relações entre o combate à criminalidade e à cidadania. [4]

A tradução dos dizeres é por demais eloquente: o policial pode até agir contra quem não seja “meliante” por não ter como “distingui-lo” em situação de confronto quando se depara com eventual situação de risco[5], não se devendo impedi-lo de atuar no combate à criminalidade, mesmo que atinja quem não tenha cometido qualquer infração penal – seja dela inocente.

Mas o que mais chama a atenção é o cinismo da menção à atuação em comunidades sem urbanização, com vias estreitas e residências contíguas. Portanto, nas favelas e periferias. A justificativa em si é discriminatória, preconceituosa e inaceitável. Elege uma classe de cidadãos de segunda ou terceira categoria. Estes podem ficar sujeitos a erros ou “acidentes” do exercício de trabalho policial.

Ora, isto é a verdadeira tentativa de negar vigência às grandes conquistas civilizatórias de igualdade e Justiça, estabelecendo-se políticas cujos resultados no período dos últimos 100 (cem) anos se mostraram desastrosas.

Também a explicação por vezes utilizada como suficiente para ações extremas nas “comunidades”, atinente à existência de “antecedentes criminais”, comporta uma ótica distorcida[6]. Primeiro porque há necessidade de definir-se o que entendem os que usam do argumento por “antecedentes criminais”: Seria a “suspeita”? A existência de inquéritos policiais? A submissão à ação penal? A existência de sentença condenatória não transitada em julgado? A condenação já tornada definitiva? O indivíduo em cumprimento de pena ou que já a cumpriu?

Qual a natureza dos “antecedentes”, isto é, que tipo de infração penal foi cometida, qual a sua gravidade[7]? Onde está a autorização legal que dá a funcionários do Estado o poder de vida e morte?

É raciocínio duvidoso e falacioso.

Operações policiais visando encontrar e capturar criminosos e o desmantelamento de organizações criminosas são bem-vindas, desde que exista planejamento, cautela, profissionalismo. Prepotência, agressividade, improvisação e irresponsabilidade são características inaceitáveis em tais situações, pois vidas poderão estar em risco ou mesmo ser ceifadas.

Simplificando: sem que se tenha consciência do que se procura, quem se procura, como fazer ao ingressar em ambientes onde vivem famílias e trabalhadores que ficam compelidas a conviver com grupos criminosos, é agir de forma a conceder à polícia ampla liberdade de ação, dar-lhe as mesmas prerrogativas de James Bond: “Licence to Kill” [8].

Nilo Batista, em ensaio sobre a teoria penal do nazismo, faz clara advertência sobre os riscos históricos de empolgar-se tais ideias, incorporando-as à legislação e práticas judiciais.

Adverte que a teoria do nacional socialismo estabelecia “um aparato continuamente operativo de ‘autolimpeza’ do corpo social”, em clara anteposição entre o direito penal do fato e direito penal de autor, ambicionando aniquilar “o próprio tipo do perturbador da paz”, a quem identificava como inimigo. E assevera com todas as letras sobre a realidade atualmente vivenciada no país, que “O sistema penal adota o discurso bélico: ao lado da “guerra contra as drogas”, uma sucessão de “combates”, de “lutas contra”.

Menciona que “No Rio, a palavra “paz” está sendo inexoravelmente desmoralizada pelo programa das Unidades de Polícia Pacificadora, que compartilha algumas características com o modelo do “campo” e, traçando um paralelo com as ações contra a “peste”, afirma que em se tratando de UPPs, os habitantes “ao invés de abrirem suas casas à inspeção […] têm seus lares invadidos pela polícia, autorizada por um mandado de busca domiciliar genérico que não tem qualquer fundamento legal”, caracterizando um “Estado de exceção em pílulas.[9]

A divisão irrefletida da sociedade entre “bons” e “maus”, com a consagração do maniqueísmo que tem como suporte a condição social ou o local de moradia, não contribui para a sua evolução, para a sua segurança ou para o bem estar de todos.

Ao contrário, a verdadeira validação do “direito penal do autor” ou do “direito penal do inimigo” ocasiona injustiças, provoca perdas de vidas inocentes, produz fissuras ainda maiores no tecido social, separando seus membros e os rotulando, enquanto ao mesmo tempo não resolve suas mazelas, ante a carência de ideias, projeto e vontade política para tanto.

Não se afasta de tais conclusões Zaffaroni quando identifica os fenômenos sociais havidos nos primórdios do nazismo, onde a “nostalgia, frustração, tédio, desprezo pelos valores burgueses, pelos princípios democráticos, pelos aspectos mais positivos do velho liberalismo”, oportunizaram um apelo “aos sentimentos, a invocação dos valores absolutos, a admiração pelo herói, uma criatividade libertária mesclada com demandas de condução autoritária”, dando espaço à necessidade de preenchimento de um aparente vazio, ampliando os efeitos da derrota na Primeira Grande Guerra e contribuindo para a debilitação da República de Weimar. [10]

Transpondo-se aquela realidade aos dias atuais, constata-se que não se pode cair na mesma armadilha. A “saudade de tempos melhores”, a invocação de regime autoritário como ideal, a suposta segurança que se teve um dia, os propagados “anseios” dos “cidadãos de bem” que apregoam que “bandido bom é bandido morto”, que defendem o armamentismo desmedido, defendem a família tradicional e se opõem à realidade da diversidade de gênero, que afirmam que cadeia é para sofrer, acabam por traduzir uma ilusão, e – pior! – uma nova modalidade de racismo: o segregacionismo social.

Nessa deturpada visão, além do negro ou pardo, encarnam o “perigo” o pobre, o malsucedido, o diferente, figuram como ameaças ao “status quo” obtido por muitos licitamente, mas por outros se valendo de espertezas e vantagens não republicanas.

3. Atuação repressora em conflito com a legalidade

O raciocínio apresentado consolida comportamento que repercute em algumas ações truculentas das polícias, nas quais não se respeita as exigências legais e constitucionais, que não só são ignoradas, mas louvadas as contrariedades às suas aplicações[11]. Registre-se, mesmo assim, o tratamento diverso quando se compara o que ocorre com os moradores de comunidades carentes com o que acontece no tratamento dado, por exemplo, aos grupamentos criminosos formados pelos milicianos[12], estendendo-se essa diferença a seus familiares[13].

O recentíssimo episódio da invasão da favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, em 06 de maio de 2021 – pátria de grande comunidade com afrodescendentes[14] –, onde inicialmente foram registradas 25 (vinte e cinco) mortes – uma delas de policial participante da operação[15] – com o acréscimo de outras 4 (quatro) nos dois dias seguintes[16], demonstra a predisposição de violência contra populações faveladas e periféricas, sendo um exemplo dentre outros de menor porte, mas igualmente letais.

Como justificar uma intervenção policial de mais de duas centenas de profissionais em uma comunidade carente com aproximadamente 40 (quarenta) mil habitantes[17], sem avaliação e estratégias de contenção da possibilidade de danos colaterais (morte de inocentes)?

Não há como se ter por normal a ação oficial que provoca tão elevado número de óbitos violentos, por mais que se possa admitir haver dentre eles pessoas com envolvimento com a criminalidade, pessoas real ou potencialmente perigosas.

Além disso, fica evidente a diferenciação da conduta quando diligências são cumpridas em bairro de classe média.[18]

Portanto, é de se concluir que a função do Estado por intermédio de suas polícias é identificar os supostos autores de crimes, prendê-los, se for o caso, e dar início aos procedimentos inquisitórios, entregando o fruto de seu trabalho ao Ministério Público e deixando à Justiça a tarefa de julgá-los.

Eventuais mortes até podem vir a acontecer, fruto de confronto e de violência praticada por aqueles que são alvo da operação, cumprindo ser ao máximo evitadas, muito menos figurar como circunstância natural e eventual objetivo a ser alcançado.

Os relatos de execução de quem já se encontrava indefeso indicam fúria homicida, intento de vingança, comportamentos não admissíveis a quem representa a sociedade organizada[19].

Atribuir-se à polícia o poder de acusar, julgar e executar – quando a pena de morte nem sequer é admitida em nosso ordenamento jurídico – é voltar às costas a toda e qualquer legalidade que se queira estabelecer no país.

O abandono dos preceitos legais representa o retorno aos tempos primitivos, concedendo-se aos agentes estatais, que não estão investidos de tais poderes, decidir entre o “bem” e o “mal” de forma instantânea.

Em recente entrevista, questionado sobre críticas de setores do Ministério Público e Judiciário brasileiros sobre a existência de um “hipergarantismo”, o qual se põe como obstáculo à punição de criminosos, Luigi Ferrajoli assentou:

(A crítica ao garantismo) É o sinal de uma grave regressão civil e cultural. As garantias penais e processuais não são apenas garantias de liberdade e verdade contra a arbitrariedade. São a principal fonte de legitimação da jurisdição e também, com um aparente paradoxo, o principal fator de eficácia da intervenção judicial. Na verdade, são as garantias que geram a maior assimetria entre a incivilidade do crime e a civilização do direito: uma assimetria que, a meu ver, representa o principal fator de deslegitimação moral e isolamento social e político do desvio e, portanto, de eficácia primária do direito penal. É por causa do desaparecimento dessa assimetria que os sistemas punitivos degeneram em sistemas de máximo direito penal, ao mesmo tempo maximamente aflitivo e maximamente ineficiente. [20]

Ressalte-se que esse pensamento não reflete a integralidade dos que atuam na persecução. Vivemos em país com dimensões continentais e temos diferentes culturas, profissionais de diferentes formações e visão, além de problemas das mais diversas ordens no âmbito criminal, Estados e regiões com maior ou menor criminalidade, com maior ou menor registro de ações violentas, com maior ou menor incidência de tráfico de entorpecentes. Sabe-se, ademais, que o comprometimento com os ideais de Justiça faz-se presente na maioria dos profissionais e autoridades envolvidos com as atividades de prevenção e repressão, como naqueles a quem compete acusar e, finalmente, nos que têm por incumbência apreciar o julgar as causas criminais.

Não se pode negar, no entanto, que o espírito justiceiro e a sanha punitivista atingem uma parcela dos agentes estatais de segurança e operadores jurídicos, trazendo como resultado nefastas consequências.

Por mais exceção que isto possa ser, há que ser denunciado e combatido. Representa a barbárie e não a ação legítima em prol da sociedade. A Constituição assegura a todos o direito à vida, à liberdade, à dignidade e ao bem-estar, aos direitos sociais, à igualdade, e Justiça, como se observa de seu preâmbulo:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

Na escalada contra os males que advém da criminalidade, esquece-se do compromisso firmado pela nação brasileira reunida em Assembleia Nacional Constituinte, pois há quem se utilize de princípios mais afetos ao “Movimento da Lei e da Ordem”[21], avançando na concretização do “Direito Penal Máximo”[22], ou do que foi definido por Jakobs, citado por Rogério Greco, que estabeleceu distinção entre o Direito Penal do Cidadão e o Direito Penal do Inimigo.

O primeiro com visão garantista, dando-se a observância e aplicação de todos os princípios fundamentais. O segundo, no entanto, chamado “Direito Penal do Inimigo, seria um Direito Penal despreocupado com seus princípios fundamentais, pois que não estaríamos diante de cidadãos, mas sim de inimigos do Estado”. Trabalha-se com a ideia de “verdadeiro estado de guerra” no qual segundo expôs Jakobs, “as regras do jogo devem ser diferentes.”

E acrescenta que o direito penal do inimigo, por Jakobs explicitado, distingue-se por três elementos: em primeiro lugar, se constata um amplo adiantamento da punibilidade, quer dizer, que neste âmbito, a perspectiva do ordenamento jurídico-penal é prospectiva (ponto de referência: o fato futuro), em lugar de – como é habitual – retrospectiva (ponto de referência: o fato cometido). Na sequência, isto é, em segundo lugar, as penas previstas são desproporcionadamente altas: especialmente, a antecipação da barreira de punição não é tida em conta para reduzir em correspondência a pena ameaçada. Por último, determinadas garantias processuais são relativizadas ou, inclusive, suprimidas.[23]

Deve-se evitar, ainda, que o entendimento venha a influir na atuação profissional dos magistrados, para que não incorram no erro de considerar como normais tais filosofias.

Mais que isso, afastar o risco de validação de determinados procedimentos ilegítimos fundados em predeterminação da culpabilidade dos indigitados autores de crime; afastar-se a legitimação de condutas contrárias à lei, pela mera suposição de que sendo os suspeitos/indiciados oriundos de classes socialmente menos favorecidas e/ou de locais onde se registram elevados índices de violência e criminalidade, estejam necessariamente a elas vinculados, ou pelo errôneo privilégio às ações destinadas à incriminação, independentemente de sua legalidade.

A preocupação com os limites a que devem obediência os juízes são sublinhados por Fabiana Alves Rodrigues, que afirma que o “controle criminal que ultrapassa barreiras da legalidade”, provoca a fragilização da democracia “pela ruptura do Estado de Direito”, o que também poderia ser havido como atuação corrupta, ainda mais quando disso advierem “benefícios pessoais ou institucionais a quem o promove”. [24]

Acresce a assertiva de que as democracias incluem o Judiciário numa posição de equidistância entre o Estado que acusa e o indivíduo que responde a uma acusação, o que encontra eco no modelo institucional brasileiro. Por outro lado, fica fragilizado quando deixa a função de árbitro de conflitos para o de combatente que usa de sua privilegiada posição no processo penal para buscar resultados incluídos nas missões institucionais dos órgãos de acusação.[25]

Desse modo, constata-se que o protagonismo judicial na busca da responsabilização criminal, na “investidura” na condição de partícipe da solução dos problemas da segurança pública, não se coaduna com o sistema processual democrático em vigor no país, além de não se constituir em comportamento adequado a quem está sagrado na condição de agente política.

4. Formas de compatibilização da legalidade com o controle da criminalidade

A questão da adequação da legalidade com o controle da criminalidade não é de fácil solução, importando em revisão da estrutura, mentalidade e propósitos das instituições policiais, ministeriais e judiciárias.

Implica profunda reflexão e discussão acerca dos rumos que se deva seguir na busca da implementação de medidas que sejam efetivas à mitigação do crime, sem descurar do cumprimento das normas constitucionais e infraconstitucionais a que devem obediência.

Contudo, já existem fórmulas para – se não resolver – pelo menos minimizar a incidência da violência institucionalizada[27], sendo representadas por instrumentos legais.

Basta que sejam efetivamente utilizadas.

Há na Constituição Federal a previsão do Controle Externo da Atividade Policial, consoante reza o artigo 129, inciso VII[28], atribuindo-se aos Procuradores-Gerais da República e Estaduais a regulamentação da forma de efetivação e realização do referido controle externo.

Conforme salienta o Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP:

Passados mais de 30 anos da Constituição Federal de 1988, a atribuição do Ministério Público de promover o controle externo da atividade policial ainda é tema relevante, atual e que demanda reflexões. Como decorrência do desenho estabelecido constitucionalmente para a persecução penal e o sistema de justiça criminal, com especial ênfase à independência do Ministério Público em face dos demais Poderes (em especial, o Executivo, onde se situam as Polícias), o controle externo da atividade policial atribuído ao Ministério Público presta-se como missão de responsabilização em casos de eventuais abusos e de indução de práticas e iniciativas que materializem uma política criminal de Estado compromissada com os direitos humanos. A atenção aos direitos humanos, vale sempre rememorar, dirige-se tanto aos cidadãos que sofrem eventuais ações criminosas e de risco quanto àqueles que sofrem a ação persecutória do Estado.[29]

O controle interno das polícias por intermédio de suas corregedorias e demais órgãos com atribuição de verificação de irregularidades no exercício profissional nem sempre se mostra efetivo. Os inquéritos policiais militares (no caso de policiais militares) e as investigações ao encargo da polícia civil correm o risco de se comprometer pelo corporativismo, ou mesmo por uma visão defensiva das respectivas corporações quanto a atos praticados contra supostos marginais.

Ações efetivas do Ministério Público no cumprimento do mister de fiscalização, visto que livres da “contaminação” do sentimento de confraria, podem vir a contribuir para que a mentalidade agressiva e violenta seja consideravelmente diminuída, não mais encarada como inerente ao exercício da função.

A audiência de custódia é outro instrumento hábil a ensejar as práticas legais nas ações policiais, como para reprimir e mesmo impedir a violência policial ante a ocorrência de contato direto do Juiz e Promotor de Justiça com quem foi recentemente aprisionado (em até 24 horas), estando ele representado por advogado ou defensor público.

Apesar da reação contrária havida inicialmente no meio policial, Ministério Público e mesmo judicial, consubstancia-se em importante instrumento em favor da consagração das garantias estabelecidas em prol do indivíduo.

Por sua vez, apregoa o Conselho Nacional de Justiça – CNJ:

Lançadas em 2015, as audiências de custódia consistem na rápida apresentação da pessoa que foi presa a um juiz, em uma audiência onde também são ouvidos Ministério Público, Defensoria Pública ou advogado do preso. O juiz analisa a prisão sob o aspecto da legalidade e a regularidade do flagrante, da necessidade e da adequação da continuidade da prisão, de se aplicar alguma medida cautelar e qual seria cabível, ou da eventual concessão de liberdade, com ou sem a imposição de outras medidas cautelares. A análise avalia, ainda, eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos, entre outras irregularidades. A implementação das audiências de custódia está prevista em pactos e tratados internacionais de direitos humanos internalizados pelo Brasil, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos. Além disso, a realização das audiências de custódia foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar, em 2015, a ADI 5240 e a ADPF 347. Desde fevereiro de 2015, foram realizadas 758 mil audiências de custódia em todo o país, com o envolvimento de pelo menos 3 mil magistrados, contribuindo para a redução de 10% na taxa de presos provisórios no país identificada pelo Executivo Federal no período. Com a pandemia de Covid-19, o Judiciário brasileiro está se adaptando para garantir a apresentação do preso a um juiz observando de forma conjunta regras de segurança sanitária e garantia de direitos da pessoa presa, o que incluiu a aprovação de normativa para a realização do instituto por videoconferência.[30]

A transformação da iniciativa em norma legal deu-se com a Lei n. 13.964/2019, que deu nova redação ao art. 310 do Código de Processo Penal, estabelecendo-se a obrigatoriedade de apresentação do preso no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas ao Juiz, que promoverá a audiência de custódia, presentes o indiciado, seu advogado ou membro da Defensoria Pública e Ministério Público, cabendo ao juiz decidir fundamentadamente sobre a soltura ou decretação da prisão preventiva.

Consiste em verdadeiro instrumento de humanização do tratamento criminal, prevenindo atos ilegais das autoridades da persecução, e, em contrapartida, também lhes garantindo segurança em suas ações, ante a possibilidade real da constatação da ausência de irregularidades, derrubando discursos vitimistas.

Nesse mesmo sentido, a obrigatoriedade do uso de câmeras corporais pelos agentes policiais em todas as operações, ligadas 100% (cem por cento) do tempo e sem que o indivíduo possa desativá-la, gravando toda e qualquer ação policial, é medida não só salutar como mandatória – tendo o condão de reprimir a brutalidade policial, bem como de se permitir a responsabilização criminal individualizada daquele que vier a cometer abusos.

Algumas medidas vêm sendo tomadas nesse sentido[31], mas ainda é pouco. A obrigatoriedade das câmeras policiais individuais de acionamento automático deve ser matéria de Lei Federal, resultando em medida a ser adotada em todo o território nacional. Que se faça uso do desenvolvimento tecnológico em prol dos direitos individuais dos cidadãos, visando reforçar o respeito às garantias constitucionais.

Outro modo importante para o controle das atividades policiais é o Juízo de Garantias.

Instituído pela Lei n. 13.964, de 24 de dezembro de 2019, em seu art. 3º inseriu no Código de Processo Penal o art. 3º-B, que o Juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, constituindo-se em instrumento fundamental para a evolução do tratamento processual penal a quem esteja sendo investigado ou acusado de infringir a lei penal.

Concedeu-se ao Juiz uma gama de atribuições que se esgotam a partir do recebimento da denúncia, mas lhe atribuem o controle de todas as atividades antecedentes ao início da ação penal.

É inquestionável que, havendo um Juiz especificamente direcionado ao atendimento das medidas e diligências referentes à fase investigativa, ocorrerá maior gerência sobre as ações empreendidas, como um disciplinamento das rotinas e requerimentos a ser apresentados, um foco mais direcionado à fase preliminar, tão importante para a obtenção de elementos probatórios e para a definição da manutenção ou não da liberdade do inculpado.

Diante de mentalidade defensiva que a sociedade tem quanto à criminalidade e aos pretensos criminosos, mostra-se perceptível que a existência de imputação de fatos que representem crimes graves e/ou de repercussão acabe por influenciar o pensamento do magistrado, e a ideia pode acompanhá-lo do primeiro contato com os autos ao momento da prolação da sentença.

Dessa forma, com o Juízo de Garantias busca-se evitar o risco de vinculação que hoje potencialmente pode vir a sacralizar a convicção inicial embasada unicamente em dados indiciários, e por isso mesmo não submetidos ao contraditório e ampla defesa. Isto é, que o Juiz que atuou desde o início das investigações e permanece até a sentença, já tomado pelo prévio convencimento a respeito dos elementos incriminatórios havidos desde o início das investigações, transfira à sentença este juízo preconcebido.

Estar-se-á prevenindo, do mesmo modo, um aspecto extremamente prejudicial na aferição de novas condições no curso do processo ou mesmo por ocasião da sentença, a permitir, por exemplo, que se aguarde em liberdade a finalização do processo, mesmo que mediante a submissão a medidas cautelares alternativas previstas no art. 319 do CPP, influindo até na possibilidade de recurso em liberdade.

Mas é de se registrar que, desafortunadamente, a Lei n. 13.694, de 24 de dezembro de 2019, está com as disposições relativas ao Juízo de Garantias suspensas por decisão do Supremo Tribunal Federal, sem que exista, até o momento, previsão de análise pelo Tribunal Pleno[32].

A apresentação do tema para discussão e votação em plenário faz-se imperativa, pela relevância da que está constituída.

5. Conclusão

É de fácil observação a necessidade de que se venha a encarar as desigualdades sociais existentes em nosso país não só no viés da pobreza e da ausência de educação, saúde e trabalho.

Também a diferença de tratamento das pessoas sobre quem pesa conjectura de envolvimento criminal por quem integra entidades governamentais incumbidas da segurança, e mesmo por agentes do Estado a quem se atribui a competência da persecução criminal e julgamento respectivo, deve ser objeto de pronta atenção.

O preconceito, como a preocupação em salvaguardar a condição de quem está situado em extrato social superior, infelizmente impregnado na coletividade em detrimento das comunidades mais humildes, deve ser obrigatoriamente revisto e abandonado.

Observa-se que existem meios de fazê-lo, talvez não para resolver o problema definitivamente, mas para trazer seus índices a patamares menores e não tão traumáticos, como provocar a releitura no trato do tema.

A conscientização e a vontade política são os primeiros passos – fundamentais para o alcance de tal desiderato; além disso deve-se buscar outras fórmulas que possam vir a contribuir para minimizar o problema.

Dar ênfase redobrada à observância das regras sobre o andamento da investigação e ação penal; existir o controle efetivo do Ministério Público sobre as ações policiais; a atuação diligente, reiterada e insistente do advogado na defesa das prerrogativas do acusado e de sua defesa, não deixando de arguir matérias que possam redundar em reconhecimento de nulidades e arbitrariedades; o olhar atento do Juiz sobre os episódios, estando sempre pronto a apontar e erradicar as ações opressivas, privilegiando as garantias constitucionais; a atuação acadêmica e de pesquisa contribuindo para aprimoramento das instituições e da efetivação das mesmas garantias; o empenho das organizações e instituições que se debruçam sobre o tema, com o engajamento efetivo da classe política e da sociedade.

Não é tarefa fácil, mas deve-se principiar pela consciência, avançando-se com o convencimento e finalizando-se com a prática.

Jorge Henrique Schaefer Martins é advogado no Escritório Ferreira & Schaefer Martins. Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de SC, é pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal e Mestre em Ciência Jurídica.

Comments


POST DESTAQUE
POSTS RECENTES
ARQUIVO
TAGS
SIGA-NOS
  • Facebook Basic Square
  • LinkedIn Social Icon
bottom of page